30 novembro 2016

A vida secreta dos filhos



E pergunta que não cala: como é esse menino longe de mim? Esses dias tive um pequeno vislumbre do João (2 anos) longe de casa, e foi emocionante!

Todos os livros que li sobre educação de filhos começaram com a seguinte pergunta “educar para quem?”.  A resposta em geral se trata de como devemos educar os filhos para viverem bem no mundo. Nós pais temos a tendência de querermos educá-los para nós, para nosso convívio e afeto, mas não é por aí. Com o filho o desafio é ajudá-lo a viver bem no mundo. Não apenas em casa, não apenas comigo ou em nossos hábitos familiares, mas no mundo. Como mãe, preciso servir a sociedade acima de mim mesma e quando o educo encontro meu lugar na teia social. Claro, há muito que pensar no assunto, mas volto ao meu vislumbre de poucos dias atrás.

Recebemos um bilhete na mochila para uma conferencia pessoal entre nós (pais) e a professora, pauta: “João”. 

João.

“João” significa Deus é misericordioso. Como eu sempre gostei de nomes e significados, a escolha deste não foi mero acaso, homenagem, numerologia ou simples gosto; foi mais. Vimos na chegada do João uma profunda experiência da misericórdia divina, seu nome está aí para nos lembrar diariamente. Aproveitamos também para educá-lo:

̶ “Seu nome, filho, nos lembra da misericórdia de Deus, de como ele nos ama e cuida de nós, o seu nome nos desafia a fazer isso também, sendo bondoso com as pessoas quando estão tristes” (versão simplificada de “misericórdia” adaptada para uma conversa com esse garotinho).

 ̶ “João, você é grande e forte, você deve usar a força para proteger e ajudar, nunca machucar, tá bom?”

E por aí vai...

Numa sexta às 14h da tarde sentamos, eu e a professora, para conversar sobre essa pauta que vai muito além de nomes, significados e propósitos sociais. Ela queria falar um pouco do desenvolvimento dele e uma leitura geral que ela tem do nosso filho: desenvolvimento motor “ok”; desenvolvimento cognitivo “ok”; desenvolvimento afetivo ... Bom, vamos conversar um pouco.

Dentre outras coisas, ela me disse algo como “o João é muito curioso, porque ele é grande e forte, e, por vezes até esquecemos que ele não é mais velho. Mas apesar de sua força bruta é uma criança sensível aos seus colegas, principalmente se tem alguém acuado e triste. Ele faz de tudo para tentar ajudar o coleguinha, leva um brinquedo, senta do lado, puxa conversa... E o mais interessante, ele não desiste! Enquanto o coleguinha não der algum tipo de retorno com pelo menos o olhar ele insiste. Se a pessoa abaixa a cabeça, por exemplo, ele se vira de cabeça pra baixo e tenta achar os olhos escondidos”.

Ah menino João, apenas dois aninhos e já está se fazendo valer nesse mundo, vasto mundo!

Poucos dias depois ele voltou pra casa com uma tatuagem de dentes no braço e outro bilhete na mochila “hoje João levou uma mordida sem motivo aparente”. Alguém quis provar pra ver se ele era de chocolate!

Para nós, um dos motivos que colocamos o João na escolinha foi justamente para que ele tivesse oportunidades de viver sem a gente e assim poder treinar suas habilidades em ambientes novos, com pessoas diferentes, porem com segurança. Eu sei que se eu souber de tudo o que ele faz e vive lá, talvez a escola descumprirá um de seus potenciais mais bacanas, mas confesso que gostei do meu vislumbre, parece que está tudo indo muito bem. 

24 novembro 2016

Encurralada



O que fazer quando em dias de chuva aparece uma filhote de cachorro vira-lata na sua garagem? No caso, na sua cidade não tem canil, nem órgão responsável pela situação? O que fazer quando o animal em questão está infestado de pulgas, e você só descobre isso depois de ver seu filho se coçando e acha uma danadinha nele? Pling! Seu cérebro começa a ligar os fatos e você começa a desesperar. “Eu seco roupas na garagem em dias de chuva, meu filho brinca na garagem em dias de chuva, ele tira sonequinas na rede na garagem todos os dias, inclusive nos dias de chuva”.

O que fazer quando a vizinha começa alimentar o animalzinho, mas este continua preferindo a sua garagem porque é ampla e tem uma criança lá. O que fazer quando você posta imagens dela na rede social e há centenas de curtidas, dezenas de compartilhamentos, mas ela continua ali na sua garagem e a chuva não pára?

O que fazer quando você começa a cuidar da filhotinha meio que por obrigação e sente seu coração começar a aquecer por ela? O que fazer? Você compra os remédios iniciais, verme, vacina, coleira anti-pulga, shampoo anti-pulga, talquinho anti-pulga, e sem se planejar gasta R$ 50,00; o motoboy aplica a vacina e diz: “aqui está o cartão dela, daqui a 20 dias precisa dar a segunda dose”. Mas ela não é minha, é da rua, apareceu, entrou, infestou a minha garagem, e tem pulga comendo a pele rechonchuda do meu filho, não tive escolha.

O que fazer quando vê o seu próprio cachorro de pelo longo começando a se coçar, e a cachorrinha, agora limpa e dedetizada, se aninha na sua garagem como quem reconhece o lugar onde obteve bons tratos? O que fazer quando você começa a ver pulgas imaginárias e se coçar sem ser picada? O que fazer se o cachorro que você já tem não suporta ver a cachorrinha em território que nem ele tem o direito de entrar? Ele esperneia e late porque pensa: “puxa, nem eu posso ficar ali na garagem”. 

O que fazer quando seu filho, que já tem picadas de pulga, acorda de manhã e pergunta, “mamãe, midinha catorro banco, pode?”.

O que fazer num mundo onde existem pessoas que pegam as crias dos seus cachorros e soltam na estrada logo ali perto da sua casa, e você sabe, existem muitos cachorros brancos espalhados na sua cidade?

O que fazer quando você entra em contato com a organização amiga dos animais e eles te dão apenas notas de desesperança? O que fazer quando a castração (para tentar prevenir que isso se repita) custa mais centenas de reais, e, sem saber a idade do bichinho, capaz dela entrar no cio antes que consigamos interromper o ciclo de cachorros pulguentos em garagens onde nem o cachorro da casa fica, e ali brincam crianças?

Respira.

A princípio, você responde a pergunta do seu filho: “Midinha, pode, hoje pode.” Depois você respira mais fundo e escreve um post sobre como se sente contra a parede para dar a resposta humana num mundo cão. 



19 novembro 2016

Adestrando meu C(oraç)ÃO



Capitão, Pitão, Capi

Então, agora temos um cachorro! Adotamos um belo pastor alemão, ele chegou quatro meses atrás com quase oito meses de idade e muita energia pra gastar. Batizamo-lo de “Capitão”, encurtado para “Pitão” pelo meu filho mais velho (dois anos), ou “Capi” quando não queremos que ele saiba que estamos falando dele. Hoje, com onze meses de idade, estamos tentando adestrar o peludo para ver se a casa volta ao seu estado de sossego, afinal nesse meio tempo nasceu Davi! Gerenciar um recém-nascido e uma criança pequena já era tarefa difícil em meu imaginário pré-parto, o que eu não esperava era que a crise de ciúme e agressividade viria do cachorro e não do irmão.

Assim que chegamos do hospital descobrimos de primeira mão que nosso amado novo integrante da família nos daria muito (muito!) trabalho. Sua reação ao ver-me com o neném no colo foi tentar me engolir ou engolir o neném, não ficou muito claro, corri pra dentro sem dar tempo de ter certeza; enquanto isso, Pedro fechava a porta na cara do trambolhudo ao som de seus latidos nervosos. 

No primeiro dia de treino o adestrador já nos deu algumas dicas e expos conceitos básicos. Ficou claro que todos nós estávamos sendo adestrados, não só o Capi. A ideia central do adestramento é de fato muito desafiadora e eu fiquei mentalmente fazendo paralelos com a minha caminhada de fé. O objetivo primário é fazer o Capitão olhar para mim, para que fixando sua atenção em mim ele receba ou não a aprovação para suas ações. O cachorro deverá ter seus ouvidos atentos para a voz do dono acima de qualquer outro ruído que chame sua atenção, isso a ponto de frear seu instinto natural de latir para uma visita ou comer cocô durante um passeio. Entenda a profundidade da comparação: ao me obedecer, o Capi. não simplesmente consente às minhas vontades, ele também vive melhor, pois eu, dona amorosa que sou, quero o seu bem. A minha meta é que ele atinja um estado de calma e confiança em mim, para que ele reaja bem diante da presença de pessoas e situações estranhas pra ele. 


Divago nas falas do adestrador. De repente me vejo diante do espelho, olho nos meus olhos e pergunto internamente: “vocês estão fixos em quem?” Sondo em seguida os meus ouvidos, “a quem vocês ouvem melhor?”. E, então, a pergunta mais difícil: “quem tem as régias do meu coração?”.

Completamos um mês de treino. Vejo melhoras. Mas o teimoso Capitão continua estranhando pessoas amigas, preciso sentar perto dele e reforçar a sua confiança. “Calma, Capitão, Não! Não! Amigo, Amigo”.  São os comandos que ele precisa internalizar. 

"Junto, Capitão, junto"
“Calma, Liz. Sossega menina. Sossega menina. Liz, Liz!”... Ouço a voz do meu Adestrador.

O professor do Capi Está nos ensinando sobre comportamento canino, “se ele fecha a boca, fiquem atentos, ele pode estar preparando para morder”. O velho livro ensina-me sobre o comportamento humano. “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida”.

Completo muitos anos de caminhada, vejo melhoras, mas meu teimoso coração segue a divagar por águas deliciosamente sujas. Falo 'deliciosamente' porque o pecado tem suas próprias garras e coberturas de chocolate. Mas o manso Cordeiro me aquieta e traz para perto do seu pulsar, onde sou capaz de perceber que o chocolate era de lama. Então vejo claramente que perto dEle eu também vivo melhor. Recalibro os tinos dos meus ouvidos. Recebo os afagos do Manso adestrador de Almas. 

“Junto, Capitão, Junto”. Puxo levemente o cabresto para que o Capitão cole sua cabeça nas minhas pernas na hora de passar por um lugar perigoso. Provejo ao meu amigo um escape à tentação de entrar em uma briga de cão, basta ele colar sua cabeça em minha perna e seguir junto. Eu sei que é difícil pra ele, mas sei que fazendo assim ele não vai se machucar. 

No final do treino, petiscos, carinhos e água fresca. Amanhã tem mais!



Capitão, Pedro, João e eu (grávida do Davi) -- foto tirada 3 dias depois que ele chegou na nossa casa

14 novembro 2016

João e Davi, filhos da misericórdia


João (2014)





































Davi (2016)







































Estou pensando sobre o momento em que peguei os meus pequenos pela primeira vez. Foram em circunstancias distintas que me vi grávida deles, mas ambas as gravidezes trouxeram o mesmo sentimento sublime de que a vida estava em curso. A vida estava compartilhada entre meu corpo forte e seus corpinhos frágeis ainda em formação.  Pegá-los pela primeira vez foi especial, a partir de então cada um era apenas um e começamos a jornada deliciosamente assustadora de nos descobrirmos.

Eu nunca fui daquelas meninas que sonham com a maternidade.  Mesmo na juventude eu não fantasiava com a ideia, ser ou não ser mãe era apenas uma coisa que poderia ou não acontecer. Por isso quando segurei o João em meus braços instantes após seu nascimento tive uma reação que me surpreendeu: imediataneamente o amei. Chorei aliviada da dor do parto e fui tomada pela presença palpável da misericórdia de Deus. A misericórdia de Deus pesava aproximadamente 4kg, e se enrolava feito tatu bola em meus braços inseguros. Ela parecia um marca texto destacando a beleza da vida humana tão inédita que ali respirou pela primeira vez.

Não gosto da expressão “fazer um filho”.  De vez em quando amigas mais jovens me perguntam como é a sensação de estar grávida? Eu sempre digo que é muito curioso, as coisas acontecem sozinhas, me sinto figurante de um filme de ficção cientifica. Eu durmo, como, e basicamente sigo fazendo as minhas coisas, enquanto o neném lentamente multiplica-se de uma para duas células, de duas para quatro e... Voislà! Cérebro, unhas, rins e tudo mais! Eu não “fiz” nada, o filho se fez. Ou melhor, a misericórdia de Deus permitiu que mais um filho se fizesse, viesse a ser. Ser! Fazemos comida, coisas, ideias, a vida é outra historia. Já dizia o velho Livro “Nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus que faz crescer”(1Co3.7).

Quando o Davi apareceu, com seus fartos cabelos pretos, dentro segundos ele estava no meu peito. Olhando pra cuca dele de cima, como quem avista um mistério, novamente chorei de emoção. Mais uma vez fui tomada pela densa presença da misericórdia de Deus. Senti-me agraciada. Meu corpo aliviado concentrou toda energia que lhe restava para pulsar o coração largo e sorridente. Quem sou eu para segurar tanta graça? Quando se está diante de um evento tão sublime quanto um nascimento não há como não se encolher, a única pessoa que ousa falar gritando é o neném com seu choro espontâneo de pavor. Viver é assombroso.

Apelidei meus meninos secreta e carinhosamente de “filhos da misericórdia”. Não é uma expressão que uso em voz alta, apenas internamente quando penso sobre eles. É uma expressão que me remete ao motivo deles existirem: a misericórdia de Deus atuando no mundo, renovando a humanidade; dando vida a meninos preciosos, dando a experiência da paternidade a pessoas comuns como eu e o pai deles.

07 novembro 2016

Dez anos de despedida



Há dez anos nos despedíamos em culto fúnebre do nosso querido, chato, amado, rabugento amigo. Lelê era a própria personificação do paradoxo. Ele era presente e leal, ao mesmo tempo inconveniente. Víamos nele como a obra de Cristo pode ser tão suficiente e tão incompleta no tempo em vida. Ele me desafiava muito com aquela intensidade toda e eu ainda guardo pesares de ofensas que ele me atirou. Tenho que resolver pendencias emocionais sozinha e isso dá um trabalho danado.

É estranho não vê-lo nos casamentos e aniversários que tipicamente reúnem amigos de longa data; ou pensar que ele nem conhece meus filhos. E a pergunta incessante “o que seria dele?”. Mesmo que eu tenha dificuldade de responder “o que se deu de mim?”, pelo menos estou viva. Podem me ver, tocar, julgar. Podem ver a minha prole e o tipo de mãe que eu me tornei. E ele? Estranho que eu ainda sinto os olhos encherem de lágrimas após dez anos. Estranho que estou há dez anos sem conversar com o Lelê sobre qualquer coisa, quando suas opiniões eram tão cotidianas. Sinto que hoje é um dia memorável, dez anos, a primeira década de tantas décadas que eu posso viver sem que ele viva.


Eu deixei o cabelo crescer e ganhei uns quilinhos, o tempo marcou meu rosto, amadureceu minhas vistas e ouso dizer que até varreu um pouco da minha irritabilidade. Ele morreu jovem e nunca será velho. Daqui uns tempos meus filhos terão a idade que ele teve. Considero que sou mais mansa e mais feminina, dou-me o direito de prover colo pros meus filhos e ser-lhes maternal. Ele recebeu terra sobre terra, sua pele já deve ter apodrecido sem nunca ter tido uma ruga na testa ou fio de cabelo branco, deleite para as minhocas de cemitério. Se é que cabelo se preserva dentro do caixão capaz de ainda estar lá castanho como sempre, aquele cabelo ralo e seboso que lhe renasceu depois da primeira rodada de quimioterapia. O tempo não lhe envelheceu nem o tornou mais manso, ele não criou novas memórias e nem inventou novos poemas.

Queria mesmo era ver o rosto dele.

- Alô, Lelê está? Sim aguardo, obrigada.
Frases que nunca mais foram ditas.

- Lelê, traz a sua esposa e filhos! São todos benvindos!
- Mãe, chama o tio Lelê, ele é legal!
- Mãe, não chama o tio Lelê não, ele é chato!
Frases que nunca serão ouvidas.

Traz esperança saber que agora, com Cristo, ele não tem mais angustias por resolver. Queria mesmo era ver o rosto dele plenamente curado pelo doce Cordeiro. Coisa boa seria ter as minhas angustias igualmente aliviadas. A morte é dura para quem fica. Ficamos na imaginação de como seríamos, na imaginação de como ele é em seu novo corpo glorificado. Ficamos na expectativa de continuar vivendo (gerúndio), ele já viveu (passado).

Tenho uma confissão a fazer, Nem sempre sonho que ele estivesse vivo. Poderia ter sido desastroso. Também, meu pai me ensinou a não brincar com o “se”. E “se”...? Tento seguir em frente sendo menos teimosa e largando as régias das possibilidades nas mãos do grande Maestro.

Tenho outra confissão a fazer, sinto-me responsável por lembrar do Lelê. Como se fosse uma profissão ou trabalho. Pelo fato dele não morar mais no mundo, se eu não recordar dele é como se ele nunca existisse. Como alguém que olha pela janela e sente grande responsabilidade de ver as coisas. Alguém precisa ver as coisas. Minha janela é a lembrança da “nossa linda juventude, páginas de um livro bom”... cantorias noite a dentro.

“vai lá Liz, (som de violão) ‘ela disse Adeus...’”. Mas quem disse “adeus” foi ele. Ela ficou pra lembrar.