07 novembro 2016

Dez anos de despedida



Há dez anos nos despedíamos em culto fúnebre do nosso querido, chato, amado, rabugento amigo. Lelê era a própria personificação do paradoxo. Ele era presente e leal, ao mesmo tempo inconveniente. Víamos nele como a obra de Cristo pode ser tão suficiente e tão incompleta no tempo em vida. Ele me desafiava muito com aquela intensidade toda e eu ainda guardo pesares de ofensas que ele me atirou. Tenho que resolver pendencias emocionais sozinha e isso dá um trabalho danado.

É estranho não vê-lo nos casamentos e aniversários que tipicamente reúnem amigos de longa data; ou pensar que ele nem conhece meus filhos. E a pergunta incessante “o que seria dele?”. Mesmo que eu tenha dificuldade de responder “o que se deu de mim?”, pelo menos estou viva. Podem me ver, tocar, julgar. Podem ver a minha prole e o tipo de mãe que eu me tornei. E ele? Estranho que eu ainda sinto os olhos encherem de lágrimas após dez anos. Estranho que estou há dez anos sem conversar com o Lelê sobre qualquer coisa, quando suas opiniões eram tão cotidianas. Sinto que hoje é um dia memorável, dez anos, a primeira década de tantas décadas que eu posso viver sem que ele viva.


Eu deixei o cabelo crescer e ganhei uns quilinhos, o tempo marcou meu rosto, amadureceu minhas vistas e ouso dizer que até varreu um pouco da minha irritabilidade. Ele morreu jovem e nunca será velho. Daqui uns tempos meus filhos terão a idade que ele teve. Considero que sou mais mansa e mais feminina, dou-me o direito de prover colo pros meus filhos e ser-lhes maternal. Ele recebeu terra sobre terra, sua pele já deve ter apodrecido sem nunca ter tido uma ruga na testa ou fio de cabelo branco, deleite para as minhocas de cemitério. Se é que cabelo se preserva dentro do caixão capaz de ainda estar lá castanho como sempre, aquele cabelo ralo e seboso que lhe renasceu depois da primeira rodada de quimioterapia. O tempo não lhe envelheceu nem o tornou mais manso, ele não criou novas memórias e nem inventou novos poemas.

Queria mesmo era ver o rosto dele.

- Alô, Lelê está? Sim aguardo, obrigada.
Frases que nunca mais foram ditas.

- Lelê, traz a sua esposa e filhos! São todos benvindos!
- Mãe, chama o tio Lelê, ele é legal!
- Mãe, não chama o tio Lelê não, ele é chato!
Frases que nunca serão ouvidas.

Traz esperança saber que agora, com Cristo, ele não tem mais angustias por resolver. Queria mesmo era ver o rosto dele plenamente curado pelo doce Cordeiro. Coisa boa seria ter as minhas angustias igualmente aliviadas. A morte é dura para quem fica. Ficamos na imaginação de como seríamos, na imaginação de como ele é em seu novo corpo glorificado. Ficamos na expectativa de continuar vivendo (gerúndio), ele já viveu (passado).

Tenho uma confissão a fazer, Nem sempre sonho que ele estivesse vivo. Poderia ter sido desastroso. Também, meu pai me ensinou a não brincar com o “se”. E “se”...? Tento seguir em frente sendo menos teimosa e largando as régias das possibilidades nas mãos do grande Maestro.

Tenho outra confissão a fazer, sinto-me responsável por lembrar do Lelê. Como se fosse uma profissão ou trabalho. Pelo fato dele não morar mais no mundo, se eu não recordar dele é como se ele nunca existisse. Como alguém que olha pela janela e sente grande responsabilidade de ver as coisas. Alguém precisa ver as coisas. Minha janela é a lembrança da “nossa linda juventude, páginas de um livro bom”... cantorias noite a dentro.

“vai lá Liz, (som de violão) ‘ela disse Adeus...’”. Mas quem disse “adeus” foi ele. Ela ficou pra lembrar. 

3 comentários:

Renato Luiz disse...

Belo Post Lis! Obrigado!
No mais... saudades e gratidão por ter convivido com essa figura emblemática que era o Lelê... que era?... estranho isso!

Lembrança:
- Cara, cê pode vir agora para o hospital ficar comigo? Tá ruim ficar aqui sozinho...
- To indo pra aí Lelê!- Eu morava a 2 minutos do Hospital...
- Lelê! Lelê! - Ele estava dormindo... Acho que ele só precisava saber que tinha alguém indo para o hospital pra ele pegar no sono! Hehehe

Depois disso eu não o vi mais... dias depois ele deu uma piorada e se foi...
Confesso que a lembrança ainda me doi um pouco...
Queria ter aproveitado um pouco mais dele...

Enfim... Deus é bom!


Kelen disse...

Doce e amarga lembrança! Obrigada por trazê-la em nossas memórias.

Eric Araújo disse...

Ei Liz! Que texto mais autêntico e inspirador! O Lelê foi realmente algo marcante em nossas vidas, e é uma pena que ainda tenhamos a capacidade de esquecer. É bom saber que existem pessoas como você para nos trazer essa memória de algo que transformou a tantos!